Primavera
tivéssemos tempo a perder
não seria crime minha Senhora
toda essa esquivez
sentaríamos plácidos
à margem do rio e ali ficaríamos a imaginar
mil modos de amar
tu colherias frívola rara flor delicada
por entre trilhas sinuosas
eu recostado numa rocha
cantaria lamurioso minhas mágoas
às lácteas águas do rio celeste
assim
sem nunca nos encontrarmos
diante do vasto lago da eternidade
nosso amor cresceria lento como as grandes árvores
e resignado em esperar que estivesses madura
para dar teu fruto
quedar-me-ia diante de ti de mãos dadas
contemplando-me no raso espelho de teus olhos
mas não é assim cara Senhora
o fim de mais um dia me embriaga com a visão do
paraíso
e dele me despeço sem tristeza ou alegria
que bom é viver!
tangerinas douradas pendem sobre minha testa
ao alcance de minhas mãos
da doce vinha
minha taça está sempre cheia e eu vivo a sorvê-la
se uma flor se me oferece
que mais posso pretender senão colhê-la
antes que feneça ao sol da tarde
Verão
caríssima Senhora
que na silhueta de seu rosto eu vislumbre a miragem de
uma raça exilada de uma estrela extinta
que seus olhos sussurrem em meu ouvido cumplicidades
de um amor superstite em busca de um espelho
que sua boca, ainda que profanada por mil línguas,
seja ardilosa o bastante para calar certas verdades e sutil o bastante para
tecer o véu de algum encantamento.
nada de mãos níveas
dedos inefáveis
que nunca fiaram
ou cozeram
antes mãos que engendrem no pão de seus filhos a fome alada dos
argonautas
que seus pés não tenham que ser gráceis como de alguma
princesa vaporosa de contos persas mas devem necessariamente ter trilhado a
desolação dos desertos
e seios generosos que aplaquem com o seu mel o fel de
alguma dor de além-berço.
e pernas solícitas que se abram assim que eu peça
mas
se fechem quando eu não mereça
e no seu regaço o navegante exausto encontre o mar da tranquilidade
Outono
venha Senhora
caminhemos ao longo dessa praia
gozemos juntos
esquecidos de nosso pecado
alguns instantes desse sol de fim de tarde
que mais posso lhe oferecer senão
pedaços de sonho e lapsos de felicidade com sabor
ilícito?
o sol já não nos doura a pele
e à noite estaremos irremediavelmente separados
Senhora
deliberadamente esqueçamos
lancemos fora nossas máscaras
como criancinhas
banhemos nossos corpos
nas águas mornas deste instante
caminhemos descalços sobre a areia
seguros
nossas marcas serão lavadas
pelas vagas inconstantes
desse mar que nos absorve
assim diluídos
impossibilitados de querermos ser
a beleza mortal
contemplemos apenas
nossas mãos entrelaçadas
Inverno
vamos cruel senhora
disseque este meu humilde cadáver
os motivos que porventura encontrar
debaixo dos escombros daquilo que chamam paixão
pode classificar como as desrazões
do falecido que nunca soube decidir
entre não viver e amar
e a morte fez a escolha de condenar-nos
eu-fantasma e você-coisa morta
a não sentirmos mais a perplexidade fundamental de
tudo que pulsa
agora enfim unidos na nulidade
de nossas mais sinceras desilusões
podemos aquiescer
e sentarmos silentes ao lado um do outro
contemplando nossa carência
sabendo que nunca mais daremos as mãos
ou sentiremos o hálito quente que prenuncia o beijo
não
nunca mais segredaremos que somos um
nunca mais segredaremos que somos um
serpenteando nossas línguas no enredo de um mortal
abraço
ilhados e lassos chegamos ao fim
ilhados e lassos chegamos ao fim
(2003)