quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Indícios da serenidade


algum canto
no ruído da cidade
a libido pela metade
um bolero à media luz
me diz:
dane-se o cenário mundial
incendiário aposentado
vamos às palavras cruzadas
mais vale folhear o hebdomadário local
de trás pra frente

o tesão pelo meio
me avisa em sotto voce:
o escuro no fim da luz
as visitas ao passado perdão pra todo lado culpas desculpadas fardos leves pra ombros curvados

no domingo com a família
o delírio sem colírio
bate à porta envergonhado
risca um fósforo na sala
e se arrepende

no meio do caminho

no desespero temperado
pelo sal da medianidade
chega a serena idade

(ago/2003)

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Envelhecer (Arnaldo Antunes)


A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer
A barba vai descendo e os cabelos vão caindo pra cabeça aparecer
Os filhos vão crescendo e o tempo vai dizendo que agora é pra valer
Os outros vão morrendo e a gente aprendendo a esquecer

Não quero morrer pois quero ver
Como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é
E dizer venha pra o que vai acontecer

Eu quero que o tapete voe
No meio da sala de estar
Eu quero que a panela de pressão pressione
E que a pia comece a pingar
Eu quero que a sirene soe
E me faça levantar do sofá
Eu quero pôr Rita Pavone
No ringtone do meu celular
Eu quero estar no meio do ciclone
Pra poder aproveitar
E quando eu esquecer meu próprio nome
Que me chamem de velho gagá

Pois ser eternamente adolescente nada é mais demodé
Com uns ralos fios de cabelo sobre a testa que não para de crescer
Não sei por que essa gente vira a cara pro presente e esquece de aprender
Que felizmente ou infelizmente sempre o tempo vai correr

Não quero morrer pois quero ver
Como será que deve ser envelhecer
Eu quero é viver pra ver qual é
E dizer venha pra o que vai acontecer

Eu quero que o tapete voe
No meio da sala de estar
Eu quero que a panela de pressão pressione
E que a pia comece a pingar
Eu quero que a sirene soe
E me faça levantar do sofá
Eu quero pôr Rita Pavone
No ringtone do meu celular
Eu quero estar no meio do ciclone
Pra poder aproveitar
E quando eu esquecer meu próprio nome
Que me chamem de velho gagá.
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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

A casa é sua (Arnaldo Antunes)



não me falta cadeira
não me falta sofá
só falta você sentada na sala
só falta você estar

não me falta parede
e nela uma porta pra você entrar
não me falta tapete
só falta o seu pé descalço pra pisar

não me falta cama
só falta você deitar
não me falta o sol da manhã
só falta você acordar

pra as janelas se abrirem pra mim
e o vento brincar no quintal
embalando as flores do jardim
balançando as cores no varal

a casa é sua
por que não chega agora?
até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora

a casa é sua
por que não chega logo?
nem o prego aguenta mais o peso desse relógio

não me falta banheiro quarto
abajur, sala de jantar
não me falta cozinha
só falta a campainha tocar

não me falta cachorro
uivando só porque você não está
parece até que está pedindo socorro
como tudo aqui nesse lugar

não me falta casa
só falta ela ser um lar
não me falta o tempo que passa
só não dá mais para tanto esperar

para os pássaros voltarem a cantar
e a nuvem desenhar um coração flechado
para o chão voltar a se deitar
e a chuva batucar no telhado

a casa é sua
por que não chega agora?
até o teto tá de ponta-cabeça porque você demora

a casa é sua
por que não chega logo?
nem o prego aguenta mais o peso desse relógio